Sunday, September 23, 2012

Mitrovica - Mitrovicë

Ponte de Mitrovica que divide os dois lados da cidade cruzados pelo rio Ibar, fotografada do lado albanês


A cidade de Mitrovica, em albanês Mitrovicë, situa-se na parte norte do Kosovo, e desde o final da guerra em 1999 encontra-se dividida entre a parte sul de maioria étnica albanesa e a parte norte de maioria étnica sérvia. A parte norte da cidade é a capital de facto do Norte do Kosovo de maioria sérvia. Antes da Guerra do Kosovo a cidade tinha, segundo as estatísticas da OSCE, 116 mil habitantes, sendo 81% destes etnicamente albaneses e apenas 10% etnicamente sérvios sendo os restantes de etnia cigana. Hoje o número de Sérvios na cidade diminuiu drasticamente, e a sua totalidade situa-se na parte norte da cidade dividida pelo rio Ibar.


História


A cidade de Mitrovica é um dos aglomerados populacionais mais antigos conhecidos na região do Kosovo sendo pela primeira vez mencionado no século XIV, em plena Idade Média, como "Civitas Sancti Demetrii", nome atribuído em honra de São Demétrio de Salónica.
A cidade esteve integrada no Reino da Sérvia antes de ser anexada pelo Império Otomano transformando-se neste período numa tipica pequena cidade oriental.
Fotografia de Adem Jashari, na parte sul da cidade,
um dos fundadores e líder do Exército de Libertaçao
do Kosovo, assassinado pelas tropas jugoslavas.
O período de maior desenvolvimento da cidade foi no século XIX quando foram descobertas grandes minas de chumbo que passaram a ser exploradas em grande escala principalmente na região de Trepca tendo a cidade de Mitrovica passado a ser um dos maiores centros industriais da região.
Bandeiras Sérvias na parte sérvia
a norte da cidade dividida pelo rio Ibar
No entanto a dimensão da cidade apenas aumentou após a conclusão da linha férrea até Skopje, em 1875, que passou assim a ligar a cidade ao porto de Salónica
Mais tarde foi construída outra linha de caminho-de-ferro que passou a ligar Mitrovica a Belgrado e consequentemente com outras cidades da Europa Ocidental. Durante a II Guerra Mundial a cidade esteve protegida pelo exército Sérvio, mudando de nome para Titova Mitrovica, no final da guerra, em honra de Tito, passando a integrar a Federação da Jugoslávia.


A ponte que divide as duas partes da cidade é patrulhada por tropas de ambos os lados (ambas as fotos)

A cidade foi um dos maiores palcos das acções militares de guerrilha entre o Exército de Libertação do Kosovo e as tropas Jugoslavas antes do início da guerra. No decurso da Guerra do Kosovo Mitrovica passou a ser a sede de comando de um contingente francês da NATO que compreendia 7000 soldados estacionados na cidade. Mais tarde a presença francesa foi reforçada com um contingente de 1200 militares dos Emirados Árabes Unidos e ainda com um pequeno número de tropas Dinamarquesas.
 
O contingente húngaro na missão KFOR da NATO, é um dos contingentes militares ainda no terreno (ambas as fotos)

Com o final da guerra a cidade tornou-se, e é ainda hoje o maior exemplo das tensões e divisões étnicas existentes no Kosovo. A parte sul da cidade, que foi a parte da cidade menos atingida pela guerra, sofreu um incremento populacional devido à chegado de um enorme número de refugiados albaneses provenientes de aldeias do interior que foram completamente arrasadas pela guerra.
A parte norte da cidade é habitada por cerca de 17 mil Sérvios já contanto com os Sérvios que para ali se deslocaram desde o final da guerra. 

O lado albanês da cidade onde predominam os minaretes (esq) O lado sérvio onde sobressaem os edifícios comunistas

Actualmente a cidade de Mitrovica sempre se revelou o maior foco de tensões étnicas entre kosovares albaneses e sérvios, alimentados pela presença de facções nacionalistas de ambos os grupos étnicos que se colocavam em ambos os lados do rio preparados para disparar sobre qualquer individuo que desejasse passar para o outro lado da ponte. Esta situação foi-se intensificando ao ponto da KFOR e a UNMIK (Missão de Administração interina das Nações Unidas no Kosovo) terem estacionado na cidade um grande número, respectivamente de tropas e polícia que ali se mantêm até hoje. 

Igreja Ortodoxa Sérvia protegida pela KFOR (esq) Carabinieri italianos patrulham o lado albanês (dta)
No entanto as manifestações de ódio étnico continuam a existir apesar da presença de tropas e polícia internacionais no terreno. São comuns motins e manifestações de albaneses contra sérvios ou vice versa que rapidamente degeneram em situações tensas com vários disparos de armas de fogo e com os manifestantes a tentarem passar a ponte até ao outro lado da cidade sendo os seus intentos apenas travados pelas tropas internacionais. Há registos de várias mortes quer de kosovares sérvios quer albaneses em confrontos étnicos após o final da Guerra do Kosovo.
A situação na cidade pode vir a piorar a partir do momento em que as tropas da KFOR e as forças policiais da UNMIK deixarem a cidade, o que deveria ter acontecido em 2012 mas foi adiado.

Diário de Viagem

Visitei a cidade de Mitrovica no mês de Março de 2012 com algumas precauções devido a esta não ser uma cidade recomendável para turistas. Cheguei a Mitrovica vindo desde a cidade de Pejë com o objectivo de efectuar uma pequena escala antes de entrar no autocarro para a capital Prishtinë e considero ter feito uma boa opção ao ter visitado esta cidade.

 
O lado albanês da cidade tem mais pessoas na rua e mais movimento de automóveis apesar de ser Domingo (ambas as fotos)

Como cheguei à cidade a partir de outra cidade do Kosovo o autocarro parou no lado albanês da cidade. 
A minha primeira impressão ao sair do autocarro foi a de que estava numa cidade do Kosovo como qualquer outra. No entanto rapidamente me apercebi que se trata de uma cidade com uma atmosfera verdadeiramente diferente de qualquer uma das outras cidades que eu já tinha visitado no Kosovo.

     No lado albanês predominam as bandeiras da Albânia e dos EUA em detrimento da bandeira nacional (ambas as fotos)

O facto de estar no Kosovo, um Estado independente desde 2008, e de predominarem bandeiras albanesas face à bandeira nacional do país onde me encontro é uma situação completamente nova para mim. Também não é agradável andar a rua a falar uma língua estrangeira que não albanês, e ver o olhar desconfiado de muitos locais a quererem saber de onde somos e o que achamos da Sérvia. Todavia, esta situação só me deu ainda mais vontade de me deslocar à parte norte da cidade de forma a ver o que lá se passa.

                 O acesso à ponte a partir do lado albanês (esq) As indicações, a ter em conta, à entrada da ponte (dta)

Claro que na cidade as informações e indicações são quase inexistentes e isso tornou bem mais difícil a minha tarefa de querer chegar à ponte de forma a passar para o lado sérvio, visto não me parecer de bom tom perguntar a um qualquer kosovar albanês o caminho para o lado sérvio da cidade. Assim, mal avistei o primeiro polícia carabinieri italiano perguntei-lhe como me poderia dirigir até à ponte, depois de ele me responder à questão optei ainda por perguntar-lhe se era seguro passar para o outro lado da cidade, ao que ele me respondeu "sim, não há problema algum. A ponte é nova e muito bonita".
                                           Zona de acesso à ponte do lado albanês (ambas as fotos)

Eu tinha conhecimento que as tensões étnicas se tinham agudizado muito em Mitrovica após a declaração da independência do Kosovo, no dia 17 de Fevereiro de 2008, e que tinha havido uma reacção violenta dos kosovares sérvios à independência da região, tornando-se comuns situações como polícias etnicamente sérvios recusarem-se a estar sob comando de autoridades etnicamente albanesas, não aceitarem a jurisdição dos tribunais kosovares

Estação de Autocarros de Mitrovica, do lado Albanês
A situação intensificou-se de tal forma do lado sérvio da cidade que as tropas internacionais chegaram a retirar dali as suas tropas após a explosão de uma granada de mão ter ferido com gravidade pessoal das Nações Unidas e da NATO. Por isso quando vi as barreiras de areia a travar o acesso de veículos motorizados à ponte, bem como adolescentes albaneses a olharem desconfiadamente para mim quando me ia aproximando da ponte achei por bem manter-me no flanco albanês devido a não saber bem o que me esperava no lado sérvio, a juntar ao facto de ter de voltar a passar a ponte para apanhar o autocarro rumo a Prishtinë, a capital do Kosovo e a minha próxima paragem.
 
          Eu ainda na zona de acesso à ponte (esq) O lado albanes junto ao rio Ibar, com a vista sob o lado sérvio (dta)

A mesma situação que se passou comigo do lado albanês passou-se com uma amiga minha italiana do lado sérvio. Ela chegou a Mitrovica a partir da Sérvia, e acabou por visitar apenas o lado Sérvio da cidade, não cruzando a ponte tal como eu. Eu já tinha tido pena de não ter visitado a parte norte da cidade, mas depois de ver as fotografias da minha amiga ainda fiquei mais decepcionado. Com a sua devida permissão publico algumas das suas fotografias:

             Interior e exterior de uma igreja Ortodoxa Sérvia no lado norte de Mitrovika (esq e dta respectivamente)
 
              Mensagens nacionalistas pintadas nas paredes dos edifícios da parte norte da cidade (ambas as fotos)
 
       Propaganda eleitoral anti-europeia e pró-russa na parte norte da cidade que vota como município sérvio (ambas as fotos)
                              Mensagens nacionalistas sérvias nas paredes (esq) Entrada da ponte do lado sérvio (dta)


Analisando os acontecimentos que se têm vindo a registar dos dois lados da cidade desde a declaração de independência do Kosovo, e após ter visitado a cidade, creio que as presença militar e policial internacionais da KFOR e UNMIK respectivamente são um garante de paz para as populações etnicamente diferentes dividas pelo rio Ibar.
Acampamentos  Militares das Nações Unidas
Confrontando os ódios que ainda hoje subsistem e que parecem estar a incrementar do lado sérvio que se sente cada mais isolado e sem apoios, penso que que a saída das forças internacionais do terreno possa abrir um espaço sem precedentes desde há vários anos para que se venham a verificar grandes confrontos étnicos na cidade face aos quais não sei se o recente aparelho policial kosovar albanês estará em condições de responder da melhor forma.
 
             Edifício antigo construído durante o domínio jugoslavo (esq) Interior de uma "kafana" ou taverna albanesa (dta)

  
Como Chegar

Chegada a Mitrovica pelo lado Sérvio
Eu entrei em Mitrovica pelo lado albanês porque viajava num autocarro desde Pejë, também no Kosovo. No entanto, quem aqui se desloca a partir da Sérvia terminará a viagem no terminal de autocarros na parte sérvia da cidade, a norte. Caso não existam ligações na cidade onde nos encontramos devemos sempre dirigir-nos a Prishtinë, uma cidade acessível de qualquer ponto dos Balcãs, excluindo a partir da Sérvia, e daí apanhar um dos muitos autocarros para Mitrovica.
De salientar que além de existirem muitas ligações a Mitrovica, de qualquer cidade do Kosovo, e também algumas desde a Sérvia não é recomendável visitar esta cidade visto não estarem ainda, nem proximamente, as condições ideais de segurança para que isto se verifique. Mesmo assim, se optar por visitar a cidade, é necessário ter em atenção que é quase impossível comunicar em inglês, existindo no entanto algumas pessoas que falam o alemão devido a grande Diáspora kosovar albanesa em países de língua germânica, como a Suíça, Áustria e a própria Alemanha. Evitar o uso da língua sérvia no lado albanês e da língua albanesa no lado sérvio, e evitar circular em solo kosovar, e ainda mais em Mitrovica com carros de matricula sérvia.

1 comment:

  1. Excelente relato! Esse é o texto mais interessante do seu blog, ou pelo menos o que eu mais gostei de ler. Eu estava a par das tensões entre as duas etnias no Kosovo apos a declaração da independência mas não imaginava que uma cidade pudesse ser tão dividida entre as duas etnias como Mitrovica. Muito bacana as fotos próximas a ponte, o relato sobre as tensões e sobre as dificuldades para um turista cruzar a ponte. Impressionante como o culto aos EUA do lado albanês e a Russia do lado sérvio ainda persistem com força.

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